A chuva castigava a cidade naquela noite fria. Gabriel, um homem de aparência jovem apesar de seus quase dois séculos de vida, caminhava pelas ruas desertas, buscando mais um pouco do tempo que lhe escapava. Ele não era imortal, apenas um ladrão. Um ladrão do tempo.
Desde que descobrira sua estranha habilidade de absorver a força vital das pessoas através do toque, vagava pelo mundo, surrupiando minutos, horas, dias... o suficiente para manter a ilusão da juventude eterna. A culpa o corroía, mas o medo da morte o impedia de parar. Ia retirando minutos, aleatoriamente, certo de que ninguém deles daria falta.
Em uma noite fatídica, seus passos o levaram a um pontilhão, onde uma jovem grávida, moradora de rua, abrigava-se da chuva. Ele não a viu, esbarrou em seu corpo frágil e, num instante, roubou o que lhe restava de vida. A jovem, com o último suspiro, deu à luz uma menina.
O desespero o dominou. A chuva lavava o sangue que manchava o chão, o choro da criança ecoava na noite. Sem pensar, Gabriel a tomou nos braços, sem saber ao certo o que fazer. Iria deixa-la em um hospital, um abrigo, qualquer lugar em que pudessem tomar conta dela.
Mas ao tocá-la, uma onda de energia o percorreu. Sentiu seu próprio tempo se esvaindo, como areia entre os dedos. A menina, a quem chamaria de Luz, herdara seu fardo, sua maldição. A culpa, assim, se transformou em algo novo, uma estranha esperança. Pela primeira vez em séculos, podia tocar alguém sem roubar-lhe a vida. Decidiu criá-la como sua filha, deixando-se envelhecer, sem subtrair mais tempo de ninguém.
Os anos se passaram. Luz cresceu forte e inteligente, sem nunca desconfiar da verdade. Gabriel lhe ensinara a usar luvas, a evitar o contato físico com qualquer outra pessoa que não fosse ele. "Somos diferentes, Luz", dizia, "devemos nos proteger". Mas o segredo corroía sua alma. Num dia de outono, com o rosto marcado pelo tempo, Gabriel revelou à Luz a história de sua mãe, de seu poder, de sua culpa.
"Você... você a matou?", Luz sussurrou, com os olhos marejados. "Sim", Gabriel respondeu, com a voz embargada, "e roubei a vida de muitos outros. Eu era um monstro, Luz.
Ainda sou, mas amo você como nunca fui capaz de amar a ninguém, nem a mim mesmo.
Luz o encarou, o conflito estampado em seu rosto. Saiu em silêncio, deixando Gabriel sozinho com seus fantasmas. Horas depois, retornou. Seus olhos brilhavam com uma luz estranha. "Pai", ela disse, "eu também tenho um segredo. Eu posso doar tempo."
Gabriel a olhou, incrédulo. Luz contou como, ainda criança, descobrira sua habilidade. Primeiro foram os animais de estimação e, depois, os pacientes do hospital em que era voluntária, dando-lhes o tempo que precisavam para se despedir, para receberem um tratamento, para viverem um último momento de alegria.
"Eu sei que é errado, pai", ela confessou, "mas eu não podia simplesmente ignorar.” Gabriel a abraçou, as lágrimas escorrendo pelo rosto do velho em que se tornara. "Luz, você é a prova de pode haver redenção. Perdoe-me, minha filha." E, naquele momento, abraçou-a com força, transferindo-lhe todo o tempo que lhe restava. "Use o tempo com sabedoria e misericórdia”
Nos braços da filha, os olhos de Gabriel se fecharam para sempre, em um último ato de amor. O tempo, pensou, antes de partir, é o maior tesouro de uma vida...