Eu já o notara antes. Enquanto passeava com minhas cachorras, reparei em um homem que estava agachado na calçada, próximo à sarjeta. Demorei um pouco para perceber que ele se barbeava, com o auxílio de uma vasilha de água, um barbeador descartável e um pequeno espelho retangular, daqueles de moldura alaranjada.
Olhei o mais discretamente que fui capaz, pois se tratava de um morador de rua, um rosto que de certa forma já me era familiar. Em outras ocasiões, eu o vira dormindo sobre papelão, ao lado de uma caçamba de lixo, abrigado sob a marquise de um pequeno prédio residencial.
Não quis constrange-lo e fingi não prestar atenção, mas durante alguns dias, fiquei pensando naquela cena, na preocupação de um homem que provavelmente nada ou quase nada tem de seu, mas que preserva o desejo da dignidade, do asseio. Algumas semanas depois, eu o vi novamente, munido do espelho e de um sabonete. Lavava os cabelos ralos, na mesma sarjeta.
Certo que nada sei da vida dele, desconhecendo completamente o caminho trilhado, os desvios que o levaram até às sarjetas da vida, à margem do conforto, da segurança e do amparo. Suponho apenas que tenha de quarenta anos. Magro, de estatura mediana, tem pele morena e castigada pelo sol. Nunca o vi pedindo nada aos passantes, mas nem imagino como sobrevive, como arruma o que comer e beber.
Hoje, dia em que escrevo esta crônica, mais uma vez em minhas andanças matutinas, em companhia de minhas fiéis escudeiras, Juju e Gigi, vi o mesmo homem, agora em outro quarteirão, agachado próximo ao meio-fio, diante de uma poça d’água que se formava por conta de um vazamento, vindo da rua ou de alguma casa. Como ele estava de costas para mim, pude observá-lo um pouco mais, sem que ele se desse conta.
Munido de um pedaço de sabão, ele lavava um par de meias marrons. Esfregava com as mãos, enxaguava e torcia, usando a poça como tanque. A cena me remeteu à ideia de lavadeiras na beira do rio, esfregando as roupas para deixa-las brancas, para dar de comer aos filhos, para que alguém se vestisse bem. Na cidade grande, poça é rio, marquise é teto, papelão é cama e pessoas podem se tornar invisíveis.
O mendigo que eu vi se contorcendo no chão, caído na frente de um grande hospital no centro de São Paulo, em plena luz do dia, era igualmente invisível. Pela calçada passavam, assim como eu também o fazia, dezenas de pessoas, mas seguiam apressadas, indiferentes, desviando como quem desvia de um objeto qualquer. Pensei em chamar por alguém, pedir socorro, quando percebi que havia um rapaz ao lado dele, ao telefone, fazendo isso.
Em todos esses momentos eu me imaginei no lugar daqueles homens, pensando no desalento de uma vida marginal, na loteria da sorte, nas escolhas que podem nos privar do mínimo. Não sou capaz de mudar muita coisa, exceto, talvez, a mim mesma. Escrevo, porém, para me lembrar, e a quem achar válido, que é preciso gratidão, empatia e solidariedade diante das vidas que não entendemos, que não vivemos, mas que existem aos montes, solitárias, à margem do mínimo e da dignidade.