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memoria

Sei que há pessoas, pouquíssimas no mundo, que não se esquecem de nada, absolutamente, daquilo que viveram. Nem sei se isso é algo necessariamente bom, porque, estou certa, todos temos momentos da vida, passagens, que desejamos esquecer, apagar. Há dores que merecem, que precisam ser enviadas a lugares inacessíveis, para que a nossa sanidade possa se manter na direção de nossos passos.

Por outro lado, sinto tanto que o tempo apague também lembranças bobas, doces, de risadas tolas entre amigos, das conversas com os avós, de tudo aquilo que aprendemos e que poderíamos usar em nosso favor. A quem, em nosso cérebro, ou em nossa alma, compete escolher o que fica e o que se vai? Talvez seja até aleatório. Talvez Freud explique; talvez ainda ninguém saiba.

E foi assim que, em uma madrugada qualquer, acordei, ouvindo sons da rua, o ressonar do meu companheiro e o ronco forte de uma de minhas cachorrinhas. Uma brisa boa entrava pelas frestas da janela e eu pensei em como seria bom poder congelar aquele momento, um oásis de paz, de leveza, entre a loucura das horas e a incerteza dos dias. Fechei os olhos novamente, na tentativa de gravar na alma o sentimento de pertencimento que aquele instante me desafiava sentir.

Para voltar a dormir, comecei a rezar, muito mais em agradecimento e foi então que algumas memórias escondidas começaram a me visitar. Em uma quase viagem no tempo, lembrei-me das minhas avós, Nena e Tita, que se foram há mais de vinte anos. Primeiro, lembrei-me do cheiro delas, intraduzível em palavras. Aromas de comida misturada com infância.

Da Tita, minha avó materna, assolaram-me as lembranças das miniaturas que ela colecionava, do cheiro de ambrosia, do frango com ervas que borbulhava nas panelas de ferro sobre o fogão a lenha e do bolo de fubá com recheio de goiabada e cobertura de limão. Em meio à névoa de aromas e recordações embaralhadas, veio-me também o riso comedido e o timbre de uma voz que aos poucos me escapa para sempre.

Eu cortava as unhas e o cabelo dela. Minha avó Nena me esperava para sessões de beleza. De banho tomado, cheirosinha, com os cabelos brancos e fininhos ainda molhados, eu me encarregava de cortá-los, ainda mais curtos, caprichando o tanto que era capaz, desde os meus dezesseis anos. Sou capaz de lembrar a textura da pele, dos fios que iam caindo ao chão, embora não me recorde do que falávamos nesses nossos íntimos momentos. Das unhas, pequenas e finas, lembro das linhas, de como se amoldavam às pontas dos dedos. Base e esmalte clarinho, eram mãos de idosa, mas também de menina.

São estranhos, ao menos para mim, os caminhos da memória. Naquela madrugada, enquanto buscava resgatar as lembranças de pessoas que amei, cada qual ao meu jeito, como pude e no tempo que tivemos juntas, também tive medo de me esquecer de mim, dos meus sonhos, os desejados e os realizados. Gravamos impressões únicas nos outros, mas jamais sabemos ao certo como e se elas permanecem. Somos poeira de estrelas, linhas tortas no livro da vida, átimos de segundos na ampulheta divina?

Talvez esse seja um dos motivos pelos quais as pessoas escrevem, tiram fotos, transformam sentimentos em música e em arte: o desejo de perpetuar as lembranças raras, tornar eterna a irrelevância cósmica de nossos dias e noites.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e gostaria de ter uma caixa mágica de memórias infinitas – /www.escriturices.com.br